“Fugi. Isolei-me para expiar minha culpa. Qual retiro?! Qual quê?! Covardia mesmo! Culpado e covarde. Ajudei a criar o monstro e deixei-o à própria sorte quando vi que estava fora de controlo. Mas tudo era apenas uma brincadeira. Como poderia imaginar que a coisa iria tão longe? E quem sofre é o amigo a quem aceitei a cumplicidade do crime e abandonei. Ele, o amigo do peito, que não tinha medo de ser feliz... O que para mim era mentira, para ele, era um meio para atingir um ideal. Um sonho. Sei que deu para o torto e nada posso fazer para remediar a situação. Além do mais, nem sei o que foi que aconteceu. Pelo menos, estarei ombro a ombro com o amigo. Para o que der e vier... e se der em cadeia, vou eu dentro. Digo que foi tudo invenção minha. Que ele não sabia de nada. É isso!”
Com esses pensamentos, dirigiu-se para o bar, pois, mal chegara à cidade, fora avisado de que o amigo estava a beber, o que não fazia há mais de três anos, quando deixou os copos para dedicar-se integralmente à paixão de treinar e organizar a equipa de futebol local, que não tinha nada para além de um punhado de jogadores que, às suas próprias custas, mantinham-na no Regional. Ninguém queria responsabilizar-se pela agremiação e ele, com muito sofrimento, conseguiu a proeza de levá-la à Terceira Divisão. Facto que obrigou ao poder político disponibilizar um terreno onde é a sede do clube e a sua moradia e a sua vida e a sua família e as suas alegrias. Tantas alegrias!
Encontra o amigo com peito sobre a mesa, rodeado de garrafas vazias. Senta-se frente ao companheiro e deixa vir à memória as cenas de tudo que aconteceu até a fuga: “Meu sacana!” – olha ternamente para o amigo que dorme profundamente – “Nunca vou esquecer aquela festa na sede. Aquilo lá tudo em obras e nós, como crianças bobas, festejando o primeiro golo na Terceira Divisão. Todo mundo lá. A Comunicação Social... Jornal. Rádio. Televisão. Eles todos. Os mesmos que antes tinham ido lá para registar o facto de nossa equipa passar todo o primeiro turno sem marcar. Demos o troco. Levamos treze, mas fizemos um... e uma grande festa à pala disto. E foi tão bonito! Quantas festas vieram a seguir. Lembro-me de todas. A da primeira vitória. A da manutenção. A da chegada dos dois profissionais que o comércio local teve que patrocinar, pois íamos de vento em popa. A da subida para a Segunda Divisão... desta, nem se fala! Ah, meu amigo! Tudo em ti era alegria. E foi essa alegria que me convenceu a tocar contigo esse barco. Fiz de tudo no clube. Minha paga? A tua alegria. Alegria que dava um colorido especial à minha vida. Por isso, meu sacana, ia em todas contigo. Ah, como posso esquecer o dia, ou melhor, a noite em que tu me entraste pela casa dentro gritando que um milagre acontecera e que a partir daquele momento tinha um team nas mãos. Por toda a noite, fez esquemas, arquitetou tácticas. Dizia, nervoso, que só faltava um elemento. Alguém para fazer a ligação entre a defesa e o ataque e segredou que tu foste achar esse elo que faltava justo numa rapariguinha. Não, tu não és o louco. Louco fui eu de dar guarida a essa ideia maluca. Porra! Eu já vi falsificarem idade. Até já soube de falsificarem sexo, mas ao contrário, homem passar por mulher... Mas mulher passar por homem... E tu tiveste o teu Dream Team. Tua laranja mecânica, tua dinamáquina. A rapariga era o teu Gérson de saias, teu Puskas menstruado, teu Cruiff de tampão, teu Ademir da Guia de fala fina, Teu Didi de batom.”
Chora. As imagens continuam. Os pensamentos. “Que mal fizeram ao teu sonho, meu sacana?
A verdade é que o obstinado treinador conseguira formar um team. Quando ele abandonou o amigo, a equipa já chamava a atenção pela positiva e tinha um jogador que saltava aos olhos. E, apesar de, regra sabida, no futebol moderno contarem as aptidões para os esquemas tácticos e técnicos, aquele jogador despontava e já era chamado O Craque. A equipa ainda estava na Segunda Divisão, mas estava tendo um excelente desempenho tanto no campeonato quanto na Taça. Pelo bonito futebol apresentado, passou a ser convidada para fazer jogos de exibição nas grandes cidades e até na Capital. E era O Craque pra cá, O Craque pra lá! Só se falava n’O Craque. Outros treinadores acreditavam que aquele craque poderia ter utilidade nas suas equipas e sondavam o seu passe. Até já tinha dirigente querendo que O Craque fizesse um teste na Selecção...
Levanta-se e arregaça as mangas preparando-se para erguer o amigo e levá-lo para casa. “Fugi, meu amigo! Mas voltei e vamos a pique com o nosso barco. Não sei o que te fizeram nem no que vai dar tudo isso, mas estaremos juntos!”
Sob o corpo do amigo está uma revista masculina que estampa na capa a foto de uma mulher seminua, com uma bola e vestida com as cores da Selecção e onde se lê: A nudez d’O Craque.
Lisboa, 2000
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