quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

INTELECTUAIS E FUTEBOL...



Quer-nos parecer que começa a ser tempo de o intelectual ou o artista irem perguntando a si próprios por que motivo o público que lhes falta esgota lotações dos estádios, num país subdesenvolvido do Ocidente ou numa república popular, pelo maduro prazer de assistir, durante noventa minutos, às aparentemente loucas correrias de um punhado de homens atrás de uma caprichosa bola de couro.


Aqui está a minha resposta com a grande ajuda do intelectual holandês August Willemsen:

É óbvio que um intelectual não atrai milhões de pessoas e serve apenas um público restrito, senão não era intelectual e diria as mesmas banalidades que o Cristiano Ronaldo ou o Edson Arantes do Nascimento.

Nos artistas a coisa complica-se. Há realmente artistas que esgotam lotações nos estádios, por exemplo músicos populares, de preferência anglo-saxónicos. E o mais engraçado – para quem acha piada, eu não! – é que por vezes nem precisam de saber cantar ou tocar um instrumento! Basta colocar discos: veja-se a inexplicável popularidade do energúmeno DJ. Enquanto que outros artistas há, sobretudo os artistas plásticos, sobretudo os que têm veleidades intelectuais, que só são conhecidos entre a família e os amigos.

Entre estes últimos, alguns há que é realmente uma pena não serem mais conhecidos. Mas também há outros que devíamos dar graças a Deus pelo facto de eles não esgotarem lotações nos estádios, porque são REALMENTE MUITO CHATOS. São uma seca de alto lá com o charuto….

Também é preciso ter em conta que “as aparentemente loucas correrias de um punhado de homens atrás de uma caprichosa bola de couro”, é só aparentemente uma louca correria! Na realidade o futebol há muito tempo que deixou de ser desporto para ser uma reprodução da própria vida. A partir de agora dou a palavra a August Willemsen, que eu traduzi do holandês:


Eu próprio, em 1973, ouvi a história de um modesto empregado de mesa num restaurante da Praça Tiradentes no Rio de Janeiro. Depois do ‘Chile’ ele começou a viver ainda mais poupadamente do que aquilo que já fazia. Do seu parco salário ele punha quase tudo de lado. A família passava privações mas ele tinha que ir a Inglaterra [Campeonato do Mundo de 1966 – CdR]. Houve familiares que contribuíram, e com essa ajuda e passando muitas necessidades, lá conseguiu juntar a soma necessária.

Mas com tudo isto, este homem modesto no Brasil, ainda não tinha resolvido todas as dificuldades. Quando tratou do passaporte e pediu um visto, as autoridades quiseram saber como é que ele, um simples empregado de mesa, tinha conseguido arranjar tanto dinheiro. Não queriam acreditar na sua história; roubo ou outra actividade suspeita parecia-lhes mais provável. Com muito esforço lá conseguiu convencer as autoridades, mas no aeroporto a aduana criou novamente dificuldades, achavam a coisa muita estranha. Lá conseguiu finalmente partir para Londres.
Para uma vitória miserável, dois jogos de merda e o Brasil eliminado na primeira-mão.
Isto passou-se há sete anos, ele deve ter contado a história umas cem vezes porque a contava com uma abnegação fatalista: ‘Essas coisas a gente esquece.’
Pensar nisso fazia-o sorrir; era eu quem tinha quase vontade de chorar. Apercebi-me que esta era a história de dezenas de milhares. E raramente reagi tão furiosamente contra as pessoas que olham o futebol com desdém, assim como contra os sentimentos que o futebol, segundo elas, provoca em muita gente.

Apesar de já ter descarregado a bílis noutras ocasiões, faço-o outra vez com muito prazer, contra os lugares-comuns levianos e idiotas, da moda e pedantes que dizem que o futebol (ou o desporto em geral) é o ópio do povo, [as outras religiões é que são o ópio do povo, e o Islão é uma overdose! – CdR] utilizado por regimes perversos para evitar que as pessoas se ocupem com política e problemas sociais.

Pelo contrário, eu penso que aqueles que pensam desta forma são os que se colocam fora da realidade. Precisamente no Brasil o futebol é a mais autêntica manifestação da cultura actual. A popularidade do futebol não flutua de maneira nenhuma com as mudanças de regimes ou de governos. Porque em países como o Brasil, duas horas de futebol são para milhões de pessoas o único escape para uma semana de frustrações e de humilhações. Através de um breve regresso ao seu tempo de criança, pela identificação com o seu herói, o torcedor pode transformar-se momentaneamente num vencedor e ser menos infeliz. Querer negar ao povo este pequeno prazer é querer castigar aqueles que no Brasil já são tão castigados, porque são ‘povo’.

Além de sádico é tacanho. Porque quem é esta gente?
É a bem dizer toda a gente. De todas as idades e de todas as classes. E eu penso que, se o futebol no Brasil une as classes sociais em vez de (como no meu país temos tendência a pensar e como é geralmente o caso) de as separar, isto deve-se a um existente denominador comum infantil. Eu uso a palavra com alguma hesitação porque dá imediatamente azo a associações com imbecilidade ou com o assumir de uma atitude arrogante. Mas eu refiro-me à infantilidade própria do homo ludens, à ingenuidade e à espontaneidade com que o ‘homem lúdico’ encara alegria e tristeza, e como a exprime. Isto é a essência da muita citada máxima de Armando Nogueira: ‘Para entender a alma do brasileiro, há que apanhá-lo no momento do golo.’
Mas porquê futebol e não outro desporto jogado com bola? Esta pergunta é válida para muitos países. Também não existe uma resposta exclusivamente brasileira. A tese de Armando Nogueira, de que o brasileiro pela sua alma ‘esférica’ estaria predisposto para o futebol é enternecedora e poética, mas falha por falta de consistência. Uma outra hipó(tese) tem a ver com o facto do futebol ser tão imprevisível, fazendo um apelo ao poder de improvisação, o que é uma característica essencial do comportamento do Brasileiro. Isto assim já me cheira.

Na realidade o futebol é também na Holanda dos desportos mais populares, enquanto que nós somos conhecidos por não ter poder de improvisação, mas nós também jogamos de maneira completamente diferente. Mesmo o nosso futebol lúdico dos anos ’70 era em grande parte baseado em padrões estudados – e é precisamente a isto que o brasileiro tem uma enorme aversão. A falta de precisão, o inesperado e o improvisar, tão característico no comportamento do brasileiro, reflecte-se também no futebol deles – mais do que em desportos jogados com a mão, porque com as mãos cometem-se menos erros. E marcam-se mais golos. Isto é o que faz com que desportos como o andebol e o basquetebol sejam tão insuportáveis para os amantes de futebol. Há uma desproporcionalidade. Há golos a mais. Há uma inflação que faz com que o golo perca o seu valor como clímax. Nenhum mortal aguenta explodir vinte, muito menos cem vezes por partida num orgástico choro de alegria, ou entrar o mesmo número de vezes em depressão suicida.

5 comentários:

  1. Depois de ler isso fica difícil falar mal do Futebol.

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  2. Não, claro que é possível. O August Willemsen morreu o ano passado e como não era crente não foi para o céu - no inferno não creio que já haja internet...

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  3. Aliás, ele aborda - no seu livro que eu traduzi do holandês para português mas que ainda não foi publicado. Estamos em negociações com o Brasil - também o lado menos romântico (ver mesmo escandaloso) do futebol que todos nós conhecemos, e não é meigo nas suas críticas.

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  4. Esse lado é aquele que o Cristiano meteu o pau.

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